Jorge Salavisa: as pessoas não morrem

Com a imagem de Jorge Salavisa lembro as palavras do escritor Guimarães Rosa, três dias antes de morrer: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.”

Para dizer a falta de Jorge Salavisa, escrevo as palavras exclamadas de Vinicius de Moraes: “Ah, meus amigos, não vos deixeis morrer assim. O ano que passou levou tantos de vós e agora os que restam se puseram mais tristes.”

Há o enunciado da sua biografia e a formalidade dos pronunciamentos, próprios do anúncio da sua morte, figura pública que foi Salavisa. E ficam o som da sua voz, a sua tão expressiva maneira de falar, a presença, a doçura. Sem nunca ter esquecido a primeira aula com Ana Mascolo, evoluiu em palcos no mundo inteiro. Dançou com Margot Fonteyn ou Nureyev, entre os grandes bailarinos do seu tempo se distinguiu, nas grandes companhias de dança se integrou. No New London Ballet, nas Companhias do Marquês de Cuevas, de Roland Petit- Zizi Jeanmaire, no London Festival Ballet dançou, em sucessivas temporadas criou a sua carreira. Com o regresso a Portugal, experimentou o prestígio das funções, o brilho do sucesso ou a discórdia de conceitos, o reconhecimento das suas qualidades ou a sensação da renúncia. Acompanhava, sem nunca faltar, os acontecimentos de arte e cultura na agenda da cidade.

Grande conversador, olhava o mundo como cenário vivo e colorido. Celebrava os prazeres dos sentidos, ou a sensualidade no gosto, no amor, na amizade. Nos últimos anos, da grande janela da casa, o seu espetáculo de cada dia era o Tejo a enquadrar a cidade. O deslumbramento era o tom do céu, a maresia, eram os seus passos caminhados ali, no coração de Lisboa. Sentia a serenidade pelo despojamento, nesta fase. Em cada objeto que da anterior morada tinha escolhido para junto de si, no novo ambiente exprimia o sentido estético da vida. O espaço, a forma, a medida, em expressão de arte. Os livros. As cores. Uma flor. “Sempre tive casas bonitas, sempre tentei encontrar o meu refúgio, mesmo que fosse num quarto de hotel,” disse-me uma vez, assim exprimindo a sua maneira de pensar sobre a desejada beleza de todas as coisas, na sensibilidade da sua maneira de ser.

O tratamento doloroso de cancro tinha sido experiência de sofrimento a prenunciar a mudança interior: “Nunca esquecerei a dignidade de todos os pacientes na sala de espera. Essa foi a peregrinação que mudou a minha vida e me fez ver o futuro de uma maneira mais sorridente. De repente comecei a notar o ambiente calmo e pacifico que lá havia. Eu tinha ido para o IPO com uma carreira, com um passado e um presente de sucesso.”

Tinha o entusiasmo e o envolvimento em novos projetos, assim imaginou o Jardim de Inverno para diversidade de acontecimentos no Teatro Municipal de São Luiz. Tempo depois, também assim acreditou na ideia de Patrícia Vasconcelos, e logo foi um dos sócios fundadores da Mansarda. Casa, refúgio, inspiração para criativos de múltiplas artes. Ou apoio e retiro para os consagrados em estado de fragilidade. E tinha zanga, por indignação forte e firme, e ódio confessado em face de descasos, incompetências, ignorâncias dos poderes estabelecidos. Acontecia sempre que, sobre o Teatro de São Carlos em estado de risco absoluto, exprimia o possível acidente, descrevia a complexidade dos bastidores, a decadência, o desgosto.

Com a imagem de Jorge Salavisa guardo o nome e a grande personalidade, a celebrar na história deste nosso tempo. E lembro as palavras do escritor Guimarães Rosa, três dias antes de morrer: “O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.”

Fonte: In Observador Online | 29/09/2020